A função educacional da utopia
A consciência do limite não coincide
com o limite da minha consciência.
A. D. Carvalho
Uma retrospectiva sobre o modo como as ciências têm evoluído, nomeadamente das que têm por objecto de estudo o Homem, vieram alterar a nossa concepção, não só do humano, mas também, e consecutivamente, do conhecimento, da educação e do mundo. Isto permite-nos considerar actualmente a educação como um projecto antropológico amplo, e não antropicamente fechado[1], em que o homem, enquanto sujeito e produtor de conhecimento, tem um papel predominantemente activo e fundante, ao contrário da passividade que caracterizava a escola tradicional.
Tais transformações permitem que novas metodologias de ensino/aprendizagem sejam concebidas de modo a possibilitar ao homem a sua evolução através da educação.
A consciência que actualmente temos da defectibilidade do ser humano, embora se revele uma imperfeição, permite-nos simultaneamente o desejo de rumar a uma perfectibilidade cada vez maior. É esta faculdade de aperfeiçoamento, como nos diz Rousseau, que nos distingue dos outros animais, «faculdade que, com a ajuda das circunstâncias, desenvolve, sucessivamente, todas as outras e reside entre nós quer na espécie, quer no indivíduo, ao passo que um animal é, ao fim de alguns meses, o que será toda a vida e a sua espécie, ao fim de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos»[2]. Graças a esta faculdade, que actua ao nível físico, intelectual, afectivo e espiritual, quer o indivíduo, quer a espécie, se vão desenvolvendo, o que nos remete para a possibilidade da educabilidade – uma disposição psicológica para a aprendizagem – através da qual nos vamos construindo, isto é, vamos sendo.
Esta abertura e incompletude do ser humano colocam-no em devir, fazendo a exploração de possíveis, ultrapassando a limitação do presente e originando formas alternativas à contingência. O Homem é, voltando a Rousseau, o único ser livre de aquiescer, ou de resistir, e é, sobretudo, na consciência desta liberdade que se mostra a espiritualidade da sua alma[3], e o homem quer, ao contrário dos outros animais que, simplesmente, adaptam as suas necessidades ao que a natureza lhes proporciona e ao que dela podem usufruir. O homem, ao contrário, molda a natureza às suas necessidades, aos seus impulsos, aos seus desejos, porque aspira, porque quer, porque se sente insatisfeito e incompleto, com vontade de progredir.
Reconhecemos a função educacional da utopia, porque também ela resulta da inadaptação do homem, do desconforto e descontentamento em relação à ordem que o circunda, e que, exaurindo da sua capacidade de aperfeiçoamento, desemboca na educabilidade, categoria sem a qual o desenvolvimento não seria possível.
A utopia é, tal como a educabilidade, uma especificidade exclusivamente humana, que abre um leque de mundos possíveis, de novos sentidos a serem explorados, e as alternativas que propõe dão-nos, acima de tudo, a certeza de que o mundo em que vivemos não tem que ser necessariamente do modo que é, pois há várias possibilidades em aberto, e, porque não, realizáveis, se a vontade humana desejar.
Como diz Ricouer, a «utopia introduz a dúvida e abala o óbvio»[4]. A ordem tida como certa parece estranha e contingente, e «há uma experiência da contingência da ordem»[5], que nos leva a por em causa o que existe no momento em que idealizamos ou lemos uma utopia. Ou seja, a utopia que deste modo terá origem na repulsa das circunstâncias que nos rodeiam – como foi no caso de Platão – permite, por isso mesmo, por em causa o mundo actual e, embora ela possa não ser realizável, permite, contudo, experimentar alternativas possíveis à contingência que nos rodeia.
A valor principal das utopias reside, para nós, e concordando mais uma vez com Ricouer, no facto de elas serem um «recurso, uma arma da crítica»[6], um acto de esperança num mundo melhor, e deixando um pouco de lado a sua ou não exequibilidade, concordamos que a utopia «seja melhor definida pela sua pretensão de fragmentar a ordem existente, do que pela sua incongruência»[7], abalando aquilo que nos parecia, até então, óbvio e aceitável.
A utopia revela-se para nós uma das possibilidades de nos libertar do sono dogmático em que, muitas vezes, estamos imergidos, embora por vezes inconscientemente, e do qual, só nos conseguiremos libertar, questionando o presente – pondo em marcha o espírito crítico e reflexivo para o qual todos os seres humanos devem ser educados – e explorando novos meios, novos caminhos, possibilidades em aberto até então desconhecidas ou camufladas. Afinal, contra o determinismo absoluto, ousamos afirmar que a realidade em que vivemos é apenas uma das possibilidades entre muitas outras, passíveis de concretização.
Consideramos útil assinalar e aceitar a distinção feita por Bloch entre utopia abstracta e utopia concreta. Na obra «Le Principe Espérance» o autor defende que a utopia concreta representa o «ponto de contacto entre o sonho e a vida, sem o qual o sonho não pode engendrar mais do que utopias abstractas e a vida não pode ser senão banal»[8], remetendo a função utópica para o possível real e superando os limites do dado quer da nossa natureza, quer do mundo exterior. A utopia abstracta será aquela que não é suportada por nenhum sujeito sólido, e não se reporta a nenhum real possível, e distingue-se da concreta que nunca está concluída nem se fica num sistema. A sua função consiste na abertura do presente à actividade criadora.
A maior virtude da utopia reside, quanto a nós, na ponte que ela estabelece entre o sonho e a vida, entre a vida e o sonho, possibilitando uma articulação entre os dois, o mesmo será dizer, uma articulação entre o real e o possível, e vice-versa. O ser é, na utopia, assumido como um ainda-não-ser[9], ou seja, «o ser passa a integrar o défice proporcionado pela sua própria interpelação».
Sem dúvida que nem todos os nossos sonhos são realizáveis, e, do mesmo modo, também as utopias poderão não o ser. Mas tanto os sonhos, como as utopias, nos permitem voar mais alto, ir mais longe, e assim a utopia se transforma num dos caminhos possíveis, e, quanto a nós, positivo, para que o Homem projecte o seu percurso num futuro em aberto, a construir, tendo por base uma expectativa marcadamente antropológica – o aperfeiçoamento da condição humana.
E tudo isto só é possível porque, de facto, a consciência do limite não coincide com o limite da nossa consciência, pois é, precisamente porque conhecemos as nossas limitações, que tentamos ultrapassá-las em busca dum progresso, no porvir. O limite é um espaço de circunscrição, mas simultaneamente de abertura, que deve ser encarado, não como fechamento, mas como fronteira, como abertura ao que está para lá, ao horizonte. O limite é um espaço habitável, que deve ser considerado simultaneamente com o limiar, sendo o limite o fim, e o limiar o começo.
Alice Mota.
[1] Cf. CARVALHO, Adalberto Dias de, A Contemporaneidade como Utopia, Ed. Afrontamento, p. 134.
[2] In ROUSSEAU, Jean-Jacques, Discurso Sobre a Origem e os fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Didáctica Ed., p. 38.
[3] Idem, ibidem, p. 38.[2] In ROUSSEAU, Jean-Jacques, Discurso Sobre a Origem e os fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Didáctica Ed., p. 38.
[4] In RICOEUR, Paul, Ideologia e Utopia, Ed. 70, p. 488.
[5] Idem, ibidem, p. 488.
[6] Idem, ibidem, p. 488.
[7] Idem, ibidem, p. 467.
[8] Cf. CARVALHO, Adalberto Dias de, A Contemporaneidade como Utopia, Ed. Afrontamento, p. 160.
[9] Idem, A Educação e os Limites dos Direitos Humanos, Porto Ed., p. 39.
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